segunda-feira, 6 de julho de 2009

A Severina e seu Casamento




VERSOS DE ASSIS JOSÉ DE ANDRADE (ANDRACI)


Eu vou falar como é
Minha "irmã" Severina
É malcriada e mentirosa
E tem a língua ferina
A cabeça parece um facho
Um olho alto e outro baixo
E o corpo não combina

O olho do lado esquerdo
Não tem sinal de pestana
O nariz é uma cela
A boca é uma sanfona
Ela é namoradeira
E gosta muito de carona

Ela tem uma orelha
Que parece uma gamela
Tem um metro de pescoço
Tem um inchaço na goela
Minha mãe não dorme mais
Somente pensando nela

A barriga muito grande
Uma perna endurecida
Cada pé é um pilão
Daquele sob medida
Nunca calçou um sapato
E só anda mal vestida

Ela carrega uma bolsa
Contendo algum dinheiro
De um lado um guarda-chuva
Pode crer meu companheiro
Gosta de homem casado
E namora rapaz solteiro

Tem mal cheiro de gambá
E de enxofre queimado
No lugar que ela chega
Deixa o povo embriagado
É capaz de lhe deixar
Até hipnotizado

Ela brigou com meu pai
E meu pai brigou com ela
Já bateu na minha mãe
E minha mãe bateu nela
Papai já deixou mamãe
Somente por causa dela

E também não tem comida
Que chegue na frente dela
Come um quilo de lingüiça
Come três de mortadela
Os vizinhos fecham os olhos
Quando ela sai na janela

Mamãe vive desgostosa
Chorando de mais a mais
Vou embora desta casa
Não posso viver em paz
Tenho uma filha única
"Parecendo o Satanás"

Já perdi todo cartaz
Meu Deus que será de mim
Se existirem outras vidas
Ela foi muito ruim
E é por isso que nessa
A peste nasceu assim

Eu que entende melhor
Sobre a reencarnação
Expliquei pra minha mãe
Sobre aquela provação
Ela foi uma assassina
No tempo da escravidão

Minha mãe não se aborreça
Não precisa mais chorar
Ela coçou a cabeça
E começou a falar
É só através do bem
Que podemos melhorar

E começou a rezar
Naquele mesmo momento
Foi chegando a Severina
Cheia de contentamento
E foi dizendo Oh! Mamãe
Arranjei um casamento

Quem é esse bonitão?
Que irá casar contigo
Não me apresente ele
Pode ser o inimigo
Ela respondeu sorrindo
O que eu quero consigo

Ele é bem conhecido
Pelo nome de "Buzega"
Portador de uma doença
Que quando não mata cega
Cresce o bucho, entorta a boca
E morrendo o diabo carrega

Credo em cruz, Ave Maria
Minha mãe falava assim
O que tem fim teve início
Você mesma é ruim
Se a doença dele pega
Vá pra distante de mim

Minha mãe não fale assim
Adore a quem lhe adora
Eu Já briguei com papai
E já bati na senhora
Me perdoa por caridade
Já chegou a minha hora

O meu pai foi embora
Hoje estou arrependida
Arrependimento tarde
Ainda tem saída
E em nome de meu pai
Perdoa-me, mãe querida

O meu namorado mora
Nas profundezas de um porão
O nariz dele parece
Um pneu de caminhão
Tem uma perna quebrada
E está faltando uma mão

Cada um o que merece
E você foi merecida
Vou fazer seu casamento
Que vai ser por despedida
Vou localizar seu pai
Com muito prazer na vida

Eu estou muito sentida
Porque a senhora chora
Cada um tem o seu dia
Já chegou a minha hora
Eu me caso e vou viver
Bem distante da senhora

Minha mãe lhe respondeu
Naquele mesmo momento
Vou comprar teu enxoval
Até por dez e quinhentos
E só quero ver teu noivo
No dia do casamento

Quando foi no outro dia
Meu pai chegou ao portão
Minha mãe o abraçou
Com muita satisfação
Enquanto a filha chorava
E lhe pedia perdão

Oh!, meu pai, perdoa a mim
Fui uma filha grosseira
Gostei de homem casado
Fui muito namoradeira
E agora vou me casar
Parece até brincadeira

Está tudo perdoado
Quero ver você casada
Vou fazer teu casamento
Sem precisar de zoada
Sua mãe já me contou
As feições do camarada

Não quero que ele venha
Aqui no nosso aposento
Vou mandar comprar carneiro
Porco, cavalo e jumento
Só quero conhecê-lo
No dia do casamento

Você vai falar com ele
Traga logo a decisão
Chegue lá bem educada
Sem precisar discussão
Se não você perde o bicho
Que já está na sua mão

Ela já saiu correndo
Toda cheia de emoção
O poeta foi atrás
Com a caneta na mão
Foi um tal de corre-corre
Na descia do porão

Ela desceu a escada
Eu também desci atrás
E avistei um mulato
Parecendo o Satanás
Brigando com sua mãe
Falando grosso demais

Eu fiquei bem escondido
Por detrás de um paredão
Ela caiu da escada
Foi em sua direção
O mulato deu um grito
Que estremeceu o chão

Não se assuste, querido
É sua noiva estimada
Desci correndo demais
Escorreguei na escada
Mas a queda foi pequena
Não estou sofrendo nada

O crioulo a ela abraçou
Com toda disposição
Ela beijava o crioulo
Toda louca de paixão
Apareceu uma velha
De cintura de pilão

Era a mãe do crioulo
Bem vestida de cigana
Foi chegando um velho magro
Com um cacho de banana
Tinha um olho esbugalhado
Sem um sinal de pestana

E foi dizendo: meu filho
Você hoje tem visita?
Essa é a minha noiva
De uma família bendita
O velho disse: prazer
Oh! que moça tão bonita

Respondeu a Severina
Chegou a vez e a hora
O prazer é todo meu
De lhe conhecer agora
O casamento é do gosto
Do senhor e da senhora?

Disse o velho sem demora
Já vamos marcar o dia
Casamento é uma sorte
Minha mãe bem que dizia
E se meu filho tiver sorte
É a maior alegria

O casamento tem que ser
Dia primeiro do mês
A velha disse: meu velho
Pode ser no dia três
O velho respondeu: não!
Agora é no dia seis

"Buzega" disse: papai
Deixe de malcriação
O senhor está precisando
De ter mais educação
No dia do casamento
Eu não quero confusão

Foi chegando a mãe da velha
Com um foice na mão
E eu do mesmo lugar
Fiquei prestando atenção
E chegou a família toda
Na profundezas do porão

A Severina pulava
De tanto contentamento
O noivo dela falava
Com esperteza e talento
Só quero conhecer teus pais
No dia do casamento

Já pode avisar a eles
Que está tudo marcado
Eles vão se preparando
Que eu estou preparado
No dia do casamento
Eu chego lá bem trajado

Ela foi se despedindo
Toda cheia de emoção
E dali eu fui saindo
Sem lhe dar demonstração
E expliquei a meu pai
A triste situação

Encontrei mamãe chorando
Encostada no fogão
O meu pai muito nervoso
Com um cacete na mão
Já briguei com um vizinho
Oh! Que atrapalhação

Eu disse: mamãe querida
Não precisa mais chorar
Eu sou muito curioso
Tudo pude observar
Já pode ficar ciente
Que ela vai se casar

A senhora desta vez
Vai sair do sofrimento
Sua filha está pulando
De tanto contentamento
Dia seis do mês que vem
Foi marcado o casamento

Ela vem atrás de mim
E vai chegar de madrugada
A senhora faz de conta
Que não está sabendo de nada
O meu pai prepare tudo
Sem precisar de zoada

Quero ver ela casada
E bem distante de mim
Vou tirar esta urtiga
Que está no meu jardim
Já queimou as minhas flores
E está queimando a mim

Oh! Meu pai, não fale assim
Seja mais conhecedor
Ela foi muito ruim
Numa vida anterior
Por isso nasceu assim
Quero explicar ao senhor

Ele demorou um pouco
E depois me respondeu
Tua irmã nasceu assim
E que culpa tenho eu
Isso foi problema dela
E não é problema meu

No relógio da parede
Já estava a zero hora
Apareceu um perfume
Vomitei tudo pra fora
Mamãe disse: é Severina
Ela vem chegando agora

Quando ela bateu na porta
A cozinha estremeceu
Os pratos caíram todos
Um gato velho correu
Um vizinho foi chegando
E nessa hora morreu

Eu fiquei observando
Todo seu comportamento
Ela dizia: meu pai
Consegui o meu intento
Dia seis do mês que vem
Foi marcado o casamento

Ele está muito contente
E mandou lhe avisar
Que só quer lhe conhecer
Quando esse dia chegar
Já pode prepara tudo
O que eu quero é me casar

O velho disse: eu vou comprar
Doze metros de cambraia
Dezoito metros de chita
Pra fazer a tua saia
Ela disse: não! Meu pai
Vou casar de mini-saia

Ela mesma compra tudo
Minha mãe falou ligeiro
O velho disse: está certo
Eu sou muito verdadeiro
E deu dez milhões a ela
Tudo em notas de um cruzeiro

O meu pai soltou-lhe os pés
Em cima do coração
E quebrou a faca dele
Bateu com ele no chão
Respeite casa de homem
Cabra sem educação

Chegou um mulato velho
Parecendo uma girafa
Não pego peixe de anzol
Sempre peguei de tarrafa
Passou a mão num cacete
E foi pegando uma garrafa

O meu pai partiu para cima
Com toda disposição
Segure a garrafa, cabra
Eu vou lhe pegar a mão
O outro ficou gemendo
Embolando pelo chão

Ele jogou a garrafa
O meu pai se defendeu
Deu-lhe uma cabeçada
Que ele até gemeu
Caiu em cima da mesa
Se levantou e correu

Severino pandeirista
Discutiu com Zé do fole
O Mané do tamborim
Quis brigar com João Tingole
Com ciúmes da cantora
Maria da Boca Mole

Com meia hora depois
A polícia foi chegando
O que aconteceu aqui
Todos foram perguntando
O meu pai já foi dizendo
Vão logo se retirando

Um soldado foi dizendo
Este velho é bagunceiro
O meu pai disse: soldado
Deixe de ser tão grosseiro
Tenha mais educação
E respeite um brasileiro

Já estou ficando louco
Está me chegando a ira
Eu também já fui soldado
Já fui escrivão e tira
Tenho 66 anos
Nunca gostei de mentira

Severina deu um grito
Que a casa estremeceu
O galo daqui é meu pai
E a galinha sou eu
Começou o quebra pau
E todo mundo correu

A minha mãe foi embora
Na casa só ficou eu
Depois o velho chegou
Retirando o quer era seu
A Severina azarada
Com aquele camarada
Irá viver no museu

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